A prosperidade fatal
Com a chuva tardia de primavera vem aquele cheiro da terra molhada, misturada com o ar quente que teima em não arrefecer com as pingas pesadas que deixam pequenas crateras sobre o pó desagregado, ao cair. É a primeira vez do ano que o sinto, e a sensação que traz é de alívio e aconchego, por algo que era familiar que trazia recordações antigas de quando a vida era tranquila e serena, cheia de bons momentos que aos poucos fui esquecendo. Como tudo se transformara, desde então! A minha visão, tão boa anos antes, degradara-se até tornar as imagens para lá de um metro difusas e de contornos sem nitidez, a minha pele revestiu-se de eczemas que me enchem de comichões insuportáveis que me obrigam a coçar até quebrar as frágeis crostas e sangrar pela sujidade do corpo despido, os meus dentes tornaram-se soltos e já perdi alguns, embora não consiga precisar quantos porque desde há muito que não me vejo ao espelho, o que não lamento, e a minha postura tornou-se curva e tímida, porque deixei de ter as costas direitas, agrilhoado como estou, porque deixei de me poder endireitar.
Pelos passos nas ervas senti que ela se aproximava, com decisão. Visitava-me sempre à mesma hora, ao fim da tarde, quando o decrépito marido partia em viagem, permitindo-lhe ver-me todos os dias, o que ela cumpriu sempre, sem excepção. Éramos amantes intermitentes, conforme os negócios do senhor Tavares: quando começavam a correr mal (e ele tinha que se ausentar do país) o nosso amor florescia; quando prosperavam, arrefecíamos os corações e os lençóis por tempo indeterminado. Mas ambos sabiamos que mais cedo ou mais tarde as coisas iam começar a correr mal para ele.
- Ainda bem que chegas - disse-lhe, com a voz embargada pela emoção. - Fico sempre ansioso nos momentos que antecedem a tua visita.
- Pois trago-te más notícias - disse por sua vez, com a altivez e frieza habituais que me fascinaram sempre. - Ele ligou-me hoje para dizer que volta amanhã. Teremos que afastar-nos mais uma vez.
Não era a primeira nem segunda vez que passava por esse momento de separação, embora me fosse sempre tão difícil de encarar e suportar. Nenhum dos dois era dado a despedidas, pelo que apenas deixávamos que aquela separação amarga e tosca viesse e tomasse lugar, como um anoitecer que cai, esperado e visto com indiferença. Não deixava porém de ser muito triste.
- As coisas estão a correr melhor agora? O negócio está controlado?
- Parece que sim. Diz também que sente saudades minhas.
- Não o censuro.
Ela apenas soltou uma risada de desdém. Era de uma beleza incomum, altiva e apetecível, de formas e gestos tão frescos e desejáveis que deitava por terra qualquer princípio de um homem com um olhar, um gesto ou convite. Nua, era soberba.
- Como sabes meu caro, isto quer dizer que hoje é a minha última visita. E confesso que já mal recordo as últimas, porque a novidade deixa rapidamente de o ser, para mim. Olho agora para trás e vejo tudo o que fizemos como muito banal e aborrecido...
- Não será capricho a mais?
- E porquê?
- Porquê?! - exclamei, incrédulo. - Como é que podes ver como banal e aborrecido os castigos corporais que me aplicaste durante o amor, o tempo que me fizeste esperar à porta do teu quarto enquanto lá dentro te masturbavas sobre a cama e eu sofria com os teus gemidos de prazer, os dias em que te servi como escravo preparando os banhos, as refeições e o leito onde dormias sozinha, obrigando-me a dormir no sofá da sala, as proibições dos meus orgasmos no amor com cigarros que me apagavas nas costas quando me aproximava do clímax, os banhos de água gelada a que me submetias para ver quão forte era a minha erecção, os pêlos arrancados do meu peito, das minhas pernas, do meu sexo? Como?!
- Está bem, está bem - respondeu, impaciente. - Tendo em conta o que qualquer casaleco vulgar faz, nós até vivemos algumas coisas engraçadas, não tanto pela tua submissão como pela minha criatividade. No entanto, e agora que aquele chato está de regresso, sinto que ainda me falta algo mais ousado, um exemplo mais forte de que tu me serves na plenitude da entrega total, o que ainda não senti até agora... Preciso de te sentir completamente subjugado pelo teu amor idiota e pelo meu esplendor fatal.
Senti-me verdadeiramente em perigo às suas palavras de insatisfação. Durante os dias anteriores acedi a todas as suas fantasias mais perturbadoras e retorcidas, mas o meu receio de que não havia nela limite na procura de novas formas de realização confirmava-se, para meu terror.
De súbito, voltou-se e olhou ao longe, através do campo, na direcção da casa do meu vizinho, com a atenção captada pelo ladrar do seu cão.
- Sempre que aqui vim - disse, mantendo o olhar semi-cerrado na longínqua casa - impressionou-me o facto de aquele indivíduo manter o pobre bicho preso por uma corrente à entrada da casa, faça chuva ou sol, todos os dias da sua triste vida. Odiava sempre o homem cada vez que passava em frente da sua casa na estrada. E porém - continuou, olhando-me no rosto com um sorriso que acendeu de repente - ao mesmo tempo admiro o servilismo absoluto a que aquele animal está obrigado a prestar ao seu dono, mestre supremo da sua sorte e do seu destino, e tudo isto por causa de uma corrente, e um prato de sopas de pão nojento que o mantém vivo. Não é fascinante?
O calor primaveril começa finalmente a queimar na pele, manchada por antigas chagas e camadas de cores mais rosa carne ou mais pálidas, conforme foram caindo e regenerando em alturas diferentes. O céu está a começar a encher-se de nuvens carregadas, as primeiras que vejo desde há várias semanas. Os negócios nunca mais voltaram a correr mal.