Monday, February 19, 2007

A vingança

Pesava um quilo e duzentas gramas, e movia-se com lentidão no prato apresentado, antes de ser aceite e seguir caminho para a panela para cozer. Foi acompanhada com um vinho branco geladíssimo, e as patas enormes, cheias de carne rija e temperada, satisfaziam o paladar com a qualidade de algo universalmente bom. Era uma sapateira soberba, vencida pela lei natural da vida, pescada para morrer, cozida para a satisfação.

Era tarde quando voltei a reencontrá-la, durante a noite, na minha cama. As suas pinças poderosas comprimiam o meu tronco com uma violência asfixiante e que eu não esperava de todo, impossibilitando os meus movimentos e debelando as tentativas de fuga, que se tornavam falhadas e ridículas, perante o poderoso alicate aprisionador. Os músculos abdominais contraíam-se em esforços que ultrapassavam as suas capacidades nominais, mas nem assim aquelas pinças diminuíam na sua investida obstinada e destemida.

Apesar da luta desigual, lutei com todas as forças para continuar naquele movimento de vai-vém, tentando esgueirar-me das garras cruzadas para a liberdade, tarefa assaz difícil. E julgava eu que o bicho empregava toda a sua força na compressão gritante, quando num grito de dores de amor percebi afinal que o esmagamento derradeiro ainda estava para vir, assim como eu, louco de dores e de prazer pelo sofrimento da noite de castigo que o animal que comera horas antes me tinha destinado como forma de vingança.

Saturday, February 10, 2007

Vera vandalizada ou Choque intencional

Nem o calor exótico e adocicado conseguia afastar Vera daquela melancolia de saudade pelo amor que se sumira com um golpe rápido e inesperado, terminando de forma abrupta todo o projecto a que já se tinha habituado a ver como o da sua própria vida.

Olhava triste pela janela, mirando a densa escuridão silenciosa, entrequebrada aqui e ali pelo cantar de um grilo ou de uma cigarra desperta, algures entre as ervas invisíveis. E o som do motor de um carro que passava na estrada, breve e desaparecido num escapulir rouco, representava bem as levas de angústia que a assaltavam de vez em quando, sempre que recordava a partida de Jorge, tão mal explicada quanto compreendida.

Era já tarde quando finalmente se decidiu a fechar a janela, vencida pela inutilidade das lágrimas interiores que vertia para a lua e pelo peso bruto e cruel da realidade que a esmagava e anulava. Sobre o tapete do quarto, o tigrado Baunilha lambia os bigodes, pesrcrutando a dona com ar admirado. Tinha acabado de defecar sobre o tecido fofo, e o seu dejecto ainda estaria fumegante, não fosse o calor que se fazia sentir dentro de casa. Tinha bebido leite a mais e o seu sensível organismo repelira o excesso atrevido do seu dono. E ao ver aquela papa liquefeita depositada na carpete laranja fogo de motivos arabescos, Vera sentiu um aperto ainda mais forte no seu peito, somando ao desgosto da perda de Jorge a infelicidade da merda do Baunilha que ainda teria que limpar...

Friday, February 09, 2007

A visão

Durou três dias e terminou ontem, no meio de um engarrafamento do trânsito.

A melhor história que já alguma vez idealizei formou-se com uma clareza magnífica, e o conceito que encerra acerta-me como um murro no peito. Começo a escrevê-la hoje.

Deixo aqui pormenores zero. Mas hei-de voltar várias vezes. Em breve espero mudar de casa, para então começar uma produção regular que até aqui não consegui debitar.

Os próximos três anos serão assim: eu e o meu quarto.

Monday, February 05, 2007

As histórias secretas

E quando mergulhava debaixo de água o som era apertado, contido, como se a pressão por si só falasse aos ouvidos, como se aquele grito oco fosse a voz do próprio mar, revelando continuamente os seus segredos, embora fosse impossível ficar a escutá-lo o tempo suficiente para uma história completa. E era então necessário regressar à superfície, onde o som fazia sentido e dizia aquilo que eu estava habituado a escutar, e que me rodeava desde o dia em que nasci.

Mas era curioso e voltava a mergulhar, e logo voltava então som que me apertava e comprimia com o seu grito surdo, o qual havia perdido a conexão com os sons dos mergulhos anteriores, quebrando a história a um ponto irreversível, roubando-lhe todo o sentido que para mim nunca adquirira, talvez por passar tão curto tempo sob o seu desenlace.

Logo ficava outra vez sem ar e regressava ao ar carregado da superfície, iluminado pelo clarão amarelo branco forte que me encandeava lá ao longe, sobre a mesinha-de-cabeceira. E os meus olhos fechavam-se um pouco, surpreendidos pelo ferimento de luz repentino. E logo a minha cabeça era puxada de novo para o mar, apagando a luz enquanto contraía os meus ouvidos com as suas coxas salgadas, querendo ansiosamente contar-me a história que repetidamente me escapava.

A água era ácida, atrevida e poluída, mas ainda assim quis sorvê-la em pirolitos irreflectidos. Em menos de um minuto tive que regressar de novo à superfície, para respirar e viver. E a história quebrou-se novamente, e todo o seu sentido foi perdido, enquanto sob a luz crua e directa um fio escorria brilhante pelo queixo, reflectindo a riqueza dos tesouros que ainda havia por descobrir naquelas profundezas revoltas e contadoras de histórias por desvendar...