Monday, February 19, 2007

A vingança

Pesava um quilo e duzentas gramas, e movia-se com lentidão no prato apresentado, antes de ser aceite e seguir caminho para a panela para cozer. Foi acompanhada com um vinho branco geladíssimo, e as patas enormes, cheias de carne rija e temperada, satisfaziam o paladar com a qualidade de algo universalmente bom. Era uma sapateira soberba, vencida pela lei natural da vida, pescada para morrer, cozida para a satisfação.

Era tarde quando voltei a reencontrá-la, durante a noite, na minha cama. As suas pinças poderosas comprimiam o meu tronco com uma violência asfixiante e que eu não esperava de todo, impossibilitando os meus movimentos e debelando as tentativas de fuga, que se tornavam falhadas e ridículas, perante o poderoso alicate aprisionador. Os músculos abdominais contraíam-se em esforços que ultrapassavam as suas capacidades nominais, mas nem assim aquelas pinças diminuíam na sua investida obstinada e destemida.

Apesar da luta desigual, lutei com todas as forças para continuar naquele movimento de vai-vém, tentando esgueirar-me das garras cruzadas para a liberdade, tarefa assaz difícil. E julgava eu que o bicho empregava toda a sua força na compressão gritante, quando num grito de dores de amor percebi afinal que o esmagamento derradeiro ainda estava para vir, assim como eu, louco de dores e de prazer pelo sofrimento da noite de castigo que o animal que comera horas antes me tinha destinado como forma de vingança.

4 Comments:

At 1:23 AM, Anonymous Anonymous said...

se me matares morrerás também ;)

p.s.: o texto está excelente mas devo confessar que estou solidária com a pobrezinha da sapateira... foi velada na panela - enquanto morria lentamente - e enterrada no teu estômago. que diriam os antropófagos acerca disso, hum?

beijo*

 
At 5:31 AM, Blogger T said...

Se o Kafka fosse vivo tinha a carreira ameaçadíssima...

 
At 11:40 PM, Blogger T said...

Se o Kafka escrevesse contos eróticos encontraria em ti, com certeza, forte concorrência.

Quando as exteriorizações tentam exceder em forma a genialidade de uma ideia, as coisas correm mal.Felizmente tu tens a capacidade de homenagear a beleza da ideia com a singeleza da forma - para que servem, afinal, as palavras, se a imaginação é tudo?

 
At 11:31 AM, Blogger Cortez said...

Com amigas como vocês, escrever ganha um um sentido de dever ainda mais profundo! O Kafka podia estar tranquilo, aqui o meu lado é mais brejeiro! ;)

Kiss!!

Prof

 

Post a Comment

<< Home