Sunday, September 17, 2006

Promessa esquecida

O Cadillac do princípio dos anos 70 era uma máquina preta gigantesca. A grelha da frente impunha um respeito presidencial, os estofos eram sofás de couro autêntico, e o depósito era parecia pequeno para aquela besta sedenta de galões de gasolina. Tinha-o trazido da América, um dos frutos de trinta anos de trabalho no Texas, onde comprara o chapéu branco de cowboy com que gostava de passear ao fim-de-semana, junto à praia. Era o Rei, de nome e de pinta. Os miúdos da vizinhança chamavam-no o King.
«King, vamos às babes?»
E atrás do volante, dava duas aceleradelas, perpetuando o espírito americano com o chapéu posto e uns óculos de sol espelhados, também comprados do outro lado do oceano.
Foi num Domingo: estacionou o Cadillac em frente ao mar, e pôs a tocar uma das suas velhas cassettes de Country que o deixavam com uma nostalgia aconchegante. O horizonte estendia-se até tocar o céu azul forte e limpo, as gaivotas pairavam ruidosas sobre o mar tranquilo, e o vento trazia os primeiros sopros de um Outono tímido que começava a chegar. De súbito, aquela voz familiar interrompeu a música, com a pronúncia inconfundível e a meiguice que ele jamais tinha esquecido:
«Armando, promise you show me the sea one day, honey?»
E a música continuou a sua balada triste. O Rei voltou-se de repente para o banco de trás, procurando a explicação para o que podia ter sido apenas uma alucinação, mas atrás não havia nada a não ser o austero e principesco banco revestido de couro. Era a voz da Cindy, tão jovem e tã0 doce como a primeira vez que a tinha escutado, num bar em Austin, em sessenta e quatro. Viveram juntos durante dois anos, muito antes de ter conhecido aquela que viria a tornar-se na sua esposa para o resto da vida. Eram jovens e estavam apaixonados, faziam planos para o futuro, mas tudo se perdeu pelo caminho, e apenas ficaram algumas boas recordações.
Puxou a fita da cassette atrás, lembrando-se de que aquele pedido poderia ter sido gravado entre a música por alguma ocasião de que já não se recordava, mas a música tocou seguida, sem quaisquer interupções, sem a voz da Cindy.
A hora do almoço estava próxima, e era altura de regressar a casa. E lá foi o Rei estrada fora, ouvindo as músicas da sua vida, recordando os seus cabelos loiros, os olhos azuis e o ramo de margaridas na mão, colhidas depois de um passeio no campo num fim-de-semana, tão longe de casa e tão longe do mar.

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