Friday, March 16, 2007

A prosperidade fatal

Com a chuva tardia de primavera vem aquele cheiro da terra molhada, misturada com o ar quente que teima em não arrefecer com as pingas pesadas que deixam pequenas crateras sobre o pó desagregado, ao cair. É a primeira vez do ano que o sinto, e a sensação que traz é de alívio e aconchego, por algo que era familiar que trazia recordações antigas de quando a vida era tranquila e serena, cheia de bons momentos que aos poucos fui esquecendo. Como tudo se transformara, desde então! A minha visão, tão boa anos antes, degradara-se até tornar as imagens para lá de um metro difusas e de contornos sem nitidez, a minha pele revestiu-se de eczemas que me enchem de comichões insuportáveis que me obrigam a coçar até quebrar as frágeis crostas e sangrar pela sujidade do corpo despido, os meus dentes tornaram-se soltos e já perdi alguns, embora não consiga precisar quantos porque desde há muito que não me vejo ao espelho, o que não lamento, e a minha postura tornou-se curva e tímida, porque deixei de ter as costas direitas, agrilhoado como estou, porque deixei de me poder endireitar.

Pelos passos nas ervas senti que ela se aproximava, com decisão. Visitava-me sempre à mesma hora, ao fim da tarde, quando o decrépito marido partia em viagem, permitindo-lhe ver-me todos os dias, o que ela cumpriu sempre, sem excepção. Éramos amantes intermitentes, conforme os negócios do senhor Tavares: quando começavam a correr mal (e ele tinha que se ausentar do país) o nosso amor florescia; quando prosperavam, arrefecíamos os corações e os lençóis por tempo indeterminado. Mas ambos sabiamos que mais cedo ou mais tarde as coisas iam começar a correr mal para ele.

- Ainda bem que chegas - disse-lhe, com a voz embargada pela emoção. - Fico sempre ansioso nos momentos que antecedem a tua visita.
- Pois trago-te más notícias - disse por sua vez, com a altivez e frieza habituais que me fascinaram sempre. - Ele ligou-me hoje para dizer que volta amanhã. Teremos que afastar-nos mais uma vez.

Não era a primeira nem segunda vez que passava por esse momento de separação, embora me fosse sempre tão difícil de encarar e suportar. Nenhum dos dois era dado a despedidas, pelo que apenas deixávamos que aquela separação amarga e tosca viesse e tomasse lugar, como um anoitecer que cai, esperado e visto com indiferença. Não deixava porém de ser muito triste.

- As coisas estão a correr melhor agora? O negócio está controlado?
- Parece que sim. Diz também que sente saudades minhas.
- Não o censuro.
Ela apenas soltou uma risada de desdém. Era de uma beleza incomum, altiva e apetecível, de formas e gestos tão frescos e desejáveis que deitava por terra qualquer princípio de um homem com um olhar, um gesto ou convite. Nua, era soberba.

- Como sabes meu caro, isto quer dizer que hoje é a minha última visita. E confesso que já mal recordo as últimas, porque a novidade deixa rapidamente de o ser, para mim. Olho agora para trás e vejo tudo o que fizemos como muito banal e aborrecido...
- Não será capricho a mais?
- E porquê?
- Porquê?! - exclamei, incrédulo. - Como é que podes ver como banal e aborrecido os castigos corporais que me aplicaste durante o amor, o tempo que me fizeste esperar à porta do teu quarto enquanto lá dentro te masturbavas sobre a cama e eu sofria com os teus gemidos de prazer, os dias em que te servi como escravo preparando os banhos, as refeições e o leito onde dormias sozinha, obrigando-me a dormir no sofá da sala, as proibições dos meus orgasmos no amor com cigarros que me apagavas nas costas quando me aproximava do clímax, os banhos de água gelada a que me submetias para ver quão forte era a minha erecção, os pêlos arrancados do meu peito, das minhas pernas, do meu sexo? Como?!
- Está bem, está bem - respondeu, impaciente. - Tendo em conta o que qualquer casaleco vulgar faz, nós até vivemos algumas coisas engraçadas, não tanto pela tua submissão como pela minha criatividade. No entanto, e agora que aquele chato está de regresso, sinto que ainda me falta algo mais ousado, um exemplo mais forte de que tu me serves na plenitude da entrega total, o que ainda não senti até agora... Preciso de te sentir completamente subjugado pelo teu amor idiota e pelo meu esplendor fatal.

Senti-me verdadeiramente em perigo às suas palavras de insatisfação. Durante os dias anteriores acedi a todas as suas fantasias mais perturbadoras e retorcidas, mas o meu receio de que não havia nela limite na procura de novas formas de realização confirmava-se, para meu terror.
De súbito, voltou-se e olhou ao longe, através do campo, na direcção da casa do meu vizinho, com a atenção captada pelo ladrar do seu cão.

- Sempre que aqui vim - disse, mantendo o olhar semi-cerrado na longínqua casa - impressionou-me o facto de aquele indivíduo manter o pobre bicho preso por uma corrente à entrada da casa, faça chuva ou sol, todos os dias da sua triste vida. Odiava sempre o homem cada vez que passava em frente da sua casa na estrada. E porém - continuou, olhando-me no rosto com um sorriso que acendeu de repente - ao mesmo tempo admiro o servilismo absoluto a que aquele animal está obrigado a prestar ao seu dono, mestre supremo da sua sorte e do seu destino, e tudo isto por causa de uma corrente, e um prato de sopas de pão nojento que o mantém vivo. Não é fascinante?

O calor primaveril começa finalmente a queimar na pele, manchada por antigas chagas e camadas de cores mais rosa carne ou mais pálidas, conforme foram caindo e regenerando em alturas diferentes. O céu está a começar a encher-se de nuvens carregadas, as primeiras que vejo desde há várias semanas. Os negócios nunca mais voltaram a correr mal.

Tuesday, March 13, 2007

Acto tornado legal

As meias de renda da Mariana Pereira
Vaz são a perdição fatal do
Rapaz vizinho da frente

Que toca o dia inteiro na piroca quente
De sangue raiado de azul celeste
E pelo que disseste
A masturbação plena foi legalizada

Coisa recente
Da semana passada.

Monday, February 19, 2007

A vingança

Pesava um quilo e duzentas gramas, e movia-se com lentidão no prato apresentado, antes de ser aceite e seguir caminho para a panela para cozer. Foi acompanhada com um vinho branco geladíssimo, e as patas enormes, cheias de carne rija e temperada, satisfaziam o paladar com a qualidade de algo universalmente bom. Era uma sapateira soberba, vencida pela lei natural da vida, pescada para morrer, cozida para a satisfação.

Era tarde quando voltei a reencontrá-la, durante a noite, na minha cama. As suas pinças poderosas comprimiam o meu tronco com uma violência asfixiante e que eu não esperava de todo, impossibilitando os meus movimentos e debelando as tentativas de fuga, que se tornavam falhadas e ridículas, perante o poderoso alicate aprisionador. Os músculos abdominais contraíam-se em esforços que ultrapassavam as suas capacidades nominais, mas nem assim aquelas pinças diminuíam na sua investida obstinada e destemida.

Apesar da luta desigual, lutei com todas as forças para continuar naquele movimento de vai-vém, tentando esgueirar-me das garras cruzadas para a liberdade, tarefa assaz difícil. E julgava eu que o bicho empregava toda a sua força na compressão gritante, quando num grito de dores de amor percebi afinal que o esmagamento derradeiro ainda estava para vir, assim como eu, louco de dores e de prazer pelo sofrimento da noite de castigo que o animal que comera horas antes me tinha destinado como forma de vingança.

Saturday, February 10, 2007

Vera vandalizada ou Choque intencional

Nem o calor exótico e adocicado conseguia afastar Vera daquela melancolia de saudade pelo amor que se sumira com um golpe rápido e inesperado, terminando de forma abrupta todo o projecto a que já se tinha habituado a ver como o da sua própria vida.

Olhava triste pela janela, mirando a densa escuridão silenciosa, entrequebrada aqui e ali pelo cantar de um grilo ou de uma cigarra desperta, algures entre as ervas invisíveis. E o som do motor de um carro que passava na estrada, breve e desaparecido num escapulir rouco, representava bem as levas de angústia que a assaltavam de vez em quando, sempre que recordava a partida de Jorge, tão mal explicada quanto compreendida.

Era já tarde quando finalmente se decidiu a fechar a janela, vencida pela inutilidade das lágrimas interiores que vertia para a lua e pelo peso bruto e cruel da realidade que a esmagava e anulava. Sobre o tapete do quarto, o tigrado Baunilha lambia os bigodes, pesrcrutando a dona com ar admirado. Tinha acabado de defecar sobre o tecido fofo, e o seu dejecto ainda estaria fumegante, não fosse o calor que se fazia sentir dentro de casa. Tinha bebido leite a mais e o seu sensível organismo repelira o excesso atrevido do seu dono. E ao ver aquela papa liquefeita depositada na carpete laranja fogo de motivos arabescos, Vera sentiu um aperto ainda mais forte no seu peito, somando ao desgosto da perda de Jorge a infelicidade da merda do Baunilha que ainda teria que limpar...

Friday, February 09, 2007

A visão

Durou três dias e terminou ontem, no meio de um engarrafamento do trânsito.

A melhor história que já alguma vez idealizei formou-se com uma clareza magnífica, e o conceito que encerra acerta-me como um murro no peito. Começo a escrevê-la hoje.

Deixo aqui pormenores zero. Mas hei-de voltar várias vezes. Em breve espero mudar de casa, para então começar uma produção regular que até aqui não consegui debitar.

Os próximos três anos serão assim: eu e o meu quarto.

Monday, February 05, 2007

As histórias secretas

E quando mergulhava debaixo de água o som era apertado, contido, como se a pressão por si só falasse aos ouvidos, como se aquele grito oco fosse a voz do próprio mar, revelando continuamente os seus segredos, embora fosse impossível ficar a escutá-lo o tempo suficiente para uma história completa. E era então necessário regressar à superfície, onde o som fazia sentido e dizia aquilo que eu estava habituado a escutar, e que me rodeava desde o dia em que nasci.

Mas era curioso e voltava a mergulhar, e logo voltava então som que me apertava e comprimia com o seu grito surdo, o qual havia perdido a conexão com os sons dos mergulhos anteriores, quebrando a história a um ponto irreversível, roubando-lhe todo o sentido que para mim nunca adquirira, talvez por passar tão curto tempo sob o seu desenlace.

Logo ficava outra vez sem ar e regressava ao ar carregado da superfície, iluminado pelo clarão amarelo branco forte que me encandeava lá ao longe, sobre a mesinha-de-cabeceira. E os meus olhos fechavam-se um pouco, surpreendidos pelo ferimento de luz repentino. E logo a minha cabeça era puxada de novo para o mar, apagando a luz enquanto contraía os meus ouvidos com as suas coxas salgadas, querendo ansiosamente contar-me a história que repetidamente me escapava.

A água era ácida, atrevida e poluída, mas ainda assim quis sorvê-la em pirolitos irreflectidos. Em menos de um minuto tive que regressar de novo à superfície, para respirar e viver. E a história quebrou-se novamente, e todo o seu sentido foi perdido, enquanto sob a luz crua e directa um fio escorria brilhante pelo queixo, reflectindo a riqueza dos tesouros que ainda havia por descobrir naquelas profundezas revoltas e contadoras de histórias por desvendar...

Sunday, October 29, 2006

Uma aposta de cento e cinquenta euros

Este é um periodo de estagnação aqui no quarto. O trabalho, porém, não entrou nesse estado; pelo contrário, o material anda a ser produzido diariamente, e em breve será todo revisto.

Já estou próximo dos 30 contos, e não são da moeda antiga. Em duas semanas devo atingir esse bonito valor. Depois, vou rever tudo.

E então tentarei a sorte. E que ela esteja comigo.

P.

Friday, October 20, 2006

El post alterado - escrito sob condições psíquicas adulteradas

E o professor ataca desta vez segundo um plano paralelo à realidade normal, segundo uma realidade temporária e inócua, mediante a passagem de algumas horas.

Mas agora, há que aproveitar!

O poema do aleijado:

O alejiado de piroca enfraquecida
pediu um prato de comida
quente e fria
como o esperma à noite, ou de dia
e nos seus espirros intermitentes
entendeu por aqueles jactos em repentes
Como o mundo não seria assim
Sem uma gaita, lábios grandes, e desejos assim-assim.
Foda-se
Cumpriram-se as bodas
Lidas com a pronúncia de Viseu
Só para rimar, entendeu?
Assim, sssss, como a cobra capelo
De língua bífida e fria como gelo
Como a real e muy grande pichota
Da altiva e arrogante marmota
De nome Frederico
El campeón de pelota basca
Diziam que era panasca
E é possível, não o posso desmentir.
Está-te a subir?
Controla-te cão mestiço de azeite fervido
Para curar o teu prurido
Há que passar esta pomada duas vezes por dia
De manhã e quando tiveres azia
Ao deitar, com a prostituta Jamila Saifás
Aquela que cobra o dobro por detrás
Mas não compensa, acredita
Está empenada e aflita
Pelos anos de grato serviço
À comunidade do Enguiço
Que a máscara de preto meteu
na vida do Carlos Ricardo Amadeu
Que cagou fino por duas semanas
Até escorrer as próprias tisanas
Que tomava para conter a caganeira.
Foi culpa da curandeira?
Era uma grande vigarista
Vendia erva-do-diabo por alpista
E ainda acompanhava
os companheiros a quem lava
Os colhões macios na água morna
Mas que não dava sorna!
Dava tesão.
Ora pois então!

Amanhã o professor real regressa, mal-disposto e aborrecido, porque entretanto dará conta que a sua vida em nada mudou. Continua a precisar de dinheiro, de tempo e de escrever mais, mas na verdade consome-se na ladaínha moderna do sem sentido e do deixa andar.

El Professor Cortez, moi même,

P

Monday, October 16, 2006

A namorada moderna

«Eu também já vi a tua fotografia, és muito bonita, sabias? Parece estranho falar contigo assim por um chat, não nos podemos ver, é estranho! Mas estou a gostar muito de falar contigo!»
«Quais são os teus interesses?»
«Acho que são os de toda a gente, gosto de passear, gosto de ler, de ouvir música, de estar com os meus amigos...»
«Tens muitos amigos?»
«Tenho alguns! Não são muitos, mas são dos bons, entendes?»
«Entendo! de que música gostas?»
«Ah, acho que gosto de um pouco de tudo, desde coisas mais comerciais até à música clássica, o jazz. Não sou esquisito!
«Esquisito? Ah! Gosto de pessoas diferentes e interessantes, como tu!Tens uma foto tua que eu possa ver?»
«Tenho, acabei de te mostrar à pouco, lembras-te?»
«Ah, sou tão esquecida! ihihihi!»
«Não faz mal! Queres que te mande a foto outra vez? A que te mandei era pequena, posso mandar-te igual mas com a resolução grande»
«É assim que eu gosto, garanhão! Aposto que és musculado e bonito...»
«Hã? Essa confesso que me não percebi... esse comentário foi um bocado esquisito!»
«Esquisito? Ah! Gosto de pessoas diferentes e interessantes, como tu!Tens uma foto tua que eu possa ver?»
«Bem, parece que és um bocado repetitiva nos comentários... um bocado mecânica, entendes?»
«Entendo! de que música gostas?»
«Sei que não gosto da música que me estás a dar, programada por um merdas qualquer com um problema sério, muito grande»
«É assim que eu gosto, garanhão! Aposto que és musculado e bonito...»
«E tu não existes, és tão oca e tão triste como os circuitos do servidor onde estás alojada em forma de insípidos zeros e uns. És zero, nada, burra de merda, lembras-te?»
«Ah, sou tão esquecida! ihihihi!»
«Estúpida como o teu programador, lembras-te?»
«Ah, sou tão esquecida! ihihihi!»
«E agora vou desligar isto e sair um bocado, falar com pessoas que existem no mundo real e que conseguem fazer-me companhia, com que eu posso conversar, pessoas a sério feitas de carne e osso e de sentimentos verdadeiros que tu nunca saberás como emular, entendes?»
«Entendo! de que música gostas?»

Friday, October 13, 2006

A recordação

«Vamos tornar isto rápido, sabes que não gosto de despedidas, está bem?»
«Posso ao menos ficar com uma recordação tua, como uma foto, por exemplo?»
«Não tenho aqui nenhuma, mas deixo-te uma coisa melhor que isso. Sempre achaste que eu beijo bem, não é?»
«Sabes bem que sim.»
E diante dele ela então lambeu o céu, antes de partir para nunca mais o ver. Desde então ele aguardou com ansiedade pelos dias cinzentos e de chuva. E assim que caíam as primeiras pingas ele atirava o rosto ao céu, esperando receber os beijos húmidos e profundos que começavam a chover, até aumentar ao nível de uma tempestade de nostalgia.

Em silêncio

Dança miúda, não precisamos de música para nada, dança comigo até que os rodopios nos levem numa espiral lenta até ao chão, onde poderemos descansar. Dança tudo o que puderes agora e neste momento, não guardes nem um bocadinho da tua dança para mais tarde, porque o mais tarde pode já não vir. E porque eu quero dançar contigo, mesmo sem a música, mesmo assim sem nada. Dança comigo agora, até ficarmos tontos de tanta felicidade. Quando tudo acabar vou sentir muitas saudades tuas, e da nossa dança silenciosa. Na verdade, se calhar nem estarei por cá para poder recordar seja o que for, mas pelo menos fica a certeza de que um dia fomos dançarinos. As estrelas recordarão por nós, elas viram tudo. Pena que não vão poder contar a ninguém.

Wednesday, October 11, 2006

O Beijo

Tinham sido tantas as recomendações da pobre e aflita mãezinha que a Sónia Manuela esquecera metade logo durante a viagem, na camioneta. Era a primeira vez que ia viver sozinha, longe de casa, por causa do curso de matemática que a tornaria doutora um dia, para orgulho dos pais, e um pouco de toda a sua aldeia.
E passados dois meses sobre a sua partida, as recomendações esfumaram-se para parte incerta. O que realmente importava naquele momento era o interesse que o rapaz mostrava por ela. Usava barba de três dias, vestia um blusão coçado e tinha uma mota. Na aldeia não havia gajos assim.
«És muito simpática Sónia, sabias? As raparigas do curso são sempre cheias de cenas, ao menos contigo dá para ter uma conversa em condições.»
«Nem uma! Sob nenhuma condição deves andar a falar com os rapazes!»
«Oh, isso não é verdade! Já conheci colegas muito simpáticas, e já me ajudaram muito também!»
«Sim, mas só pensam na matemática, começam logo a pensar cenas se as convidares para tomar um café, entendes?»
«Não! Rapazes, nem pensar! E se queres tomar café fazes em casa! Já te meti na mala uma cafeteira e um saco do melhor lote que tinha na mercearia do Sr. Albino.»
«Pois, isso já não sei. Mas também acho que não tem nada de mal, não é?»
«Vês porque é que eu digo que és diferente?»
«Diferente o tanas! Além disso sai mais barato e não tens que apanhar frio na rua!»
«Dizes isso porque és simpático! Sou igual às outras todas!»
«E quem te disse que as outras todas têm uns olhos assim? E um sorriso espectacular?»
«Foi o Sr. Albino. E ofereceu também pêras e um saco de bananas para a viagem, que ainda leva umas horas. Não são nada coisas a mais, assim escusas de comprar lá e gastar dinheiro!»
«Oh, que grande mentira! Sou vulgaríssima! Tu é que estás a querer ser querido!»
«E consigo ser?»
«Consegues, pois! Se comeres sempre em casa vais ver o dinheiro que poupas! Agora parece-te pouco mas isso bem governado dá para muito tempo! Faz-se dar!»
«Sabes bem que sim! Aliás, tu já és, não precisas de fazer mais nada!»
«Tu é que és super querida. E além disso, já disse que adoro o teu cheiro?»
«É de cabra. Como está curado podes guardar fora do frigorífico. Queres levar uns chouriços, também?»
«Não! Mas tem alguma coisa de especial?»
«É assim misterioso, doce e quente...entendes?»
«Mesmo assim levas agasalhos que cheguem?»
«Sim! Acho que te percebo, mas eu não o consigo sentir!»
«Tens que procurar bem... está entre o pescoço e a orelha, aqui escondido pelo teu cabelo.»
«Neste saco? É uma alface das nossas, para fazeres uma salada. Pronto, já vimos que está tudo, agora vai lá senão perdes a camioneta!»
«Ah! Mas o que foi isso?!»
«Foi um beijo.»
«Um beijo!»
«Um beijo??»

Domesticação

Morde-me bicho-cão, com gentileza só para tornar rubra a pele que conheces pelo seu sabor, deixa-me pequenas marcas rosadas nos braços, nas coxas, nas nádegas. Pinta de carmim o meu corpo com os teus dentes artistas, tão cuidadosos que tornam o teu ataque uma carícia, a tua fúria uma ternura incompreendida. No meu suor encontrarás a fonte líquida das imoralidades que te saciam a sede, e assim te peço que a bebas até à exaustão, bebe-a até à secura do granito velho e dos líquenes amarelecidos. Lambe-me, morde-me e diz-me com esses olhos vermelhos fitados nos meus se depois da minha purificação ainda serás o meu fiel companheiro.

Esta noite vem cá o meu namorado, e o papá vai soltar-te no campo para que não deixes ninguém aproximar-se de mim. Vais cumprir o teu papel, bicho-cão?

Eu preferia que não o matasses. Mas se acontecer, vem logo ter comigo aqui ao meu quarto. Estarei aflita e chorosa, e tu ainda não conheces o gosto do sal.

Tuesday, October 10, 2006

Definição de Bicho-Cão

Bicho-Cão: canídeo de grande porte, de pêlo negro mate e curto. O focinho é esguio e geralmente com o lábio superior branco. Os olhos são pequenos e rasgados, de cor avermelhada.Tem hábitos noturnos, e durante o dia escapa do calor refugiando-se no seu esconderijo, entre as rochas, ou debaixo da vegetação. Possui uma grande resistência que o permite correr grandes distâncias durante toda uma noite se precisar. Quando domesticado mostra uma obediência cega ao seu dono, podendo ser facilmente treinado para matar. Hoje em dia encontra-se porém em vias de extinção.

Monday, October 09, 2006

Ainda é cedo

Quando dormia menos do que quatro horas durante a noite, o sono nas aulas tornava-se hipnótico, uma letargia destruidora e torturante de onde não era possível fugir. Tinha o cotovelo pregado na mesa e a mão a segurar a cabeça atordoada com as luzes, com a voz do professor vinda de uma realidade que não era a sua. Porém, ao mudá-la de posição (colocando-a sobre o queixo fingindo interesse na matéria que não conseguia ouvir) foi surpreendido com aquele travo estranho proveniente dos dedos indicador e médio. No meio da hipnose ele então sorriu.

«Olha que dois dedos aleija!»

Mas isso tinha sido logo no início. Em pouco tempo os dois foram aceites com a naturalidade do nascer do dia. E mesmo com as exageradas vezes que lavou as mãos ao longo daquele dia, a essência hipnótica recusou a partir de forma definitiva. Mesmo assim ele insistia, até conseguir lavar o sono de vez.

Wednesday, October 04, 2006

Ideia nº3 - A mais brilhante

Vou de férias. Aproveito e levo comigo os posts antigos para trabalhá-los um bocado. Devo voltar a aparecer por estes lados lá para Domingo, com mais algumas perspectivas do quarto.

Boa viagem, professor.

Ideia nº2: O Bicho-cão

«Se quiseres podes vir até cá, os meus pais vão estar fora três dias», disse ela ao telefone, com uma voz sem grande entusiasmo. «Mas olha que o meu pai deixou o bicho-cão solto no campo, e não há maneira de chegar aqui sem o atravessar.»

Ideia nº 1: Dúvida de morte

A ideia nº1 fala de um sujeito que descobre um par de cuequinhas da sua mulher debaixo do banco do carro que acabou de comprar ao melhor amigo. Será que são as mesmas, será que a mulher do amigo tem umas iguais? Pega no carro e conduz tresloucado até casa, onde pretende remexer na gaveta de roupa interior da mulher para ver se encontra ou não a dita peça. Durante o trajecto vai olhando para o banco do passageiro ao seu lado, tentando imaginar se ela andou ali, se entregou ali, procurando manchas no tecido, imaginando com ódio de morte a entrega de um ao outro. Com a distracção acaba por falhar uma curva e cair com o carro numa falésia, junto ao mar. Nunca viria a saber se as cuequinhas estavam dentro da gaveta ou não.

Tuesday, October 03, 2006

Amanhã é dia de descanso

E o professor declara luto pela morte da sua realidade, desde Quarta-Feira, até Domingo.

Para assinalar o feliz acontecimento, serão publicadas três ideias esta noite, nascidas no seu quarto.

Brilhante ideia essa
Ordenar as pequenas ideias
Moldar as tuas odisseias

Teorizar encantos
Radicalizar os santos
Até que se faça dia
Breve e justa profecia
Amanheça o sol com calor
Louve-se o fogo, desperte-se o ardor
Haja pois loucura suficiente!
O grito seco é ideia latente.

Aos letrados e assíduos leitores do quarto pergunto como é que se chama a forma de verso que forma uma palavra com as iniciais de cada linha?
(não é linha que se diz, pois não? Ai professor, és uma nódoa!)

E se

Eu não nasci para romancear?

Hã?

Noites quentes

O gato suava na pinadela ---- com a prima dela?
A tia Aurora depilava-se no Gerês ---- com Mach três?
Margot Alberta porque te ris assim ---- quando falamos de mim?
Ficámos a saber primeiro ---- o Gil é trapaceiro


E no meio de uma pinadela
Com Margot, debaixo de uma Aurora boreal
Gil descobriu um bigode pintado na tela
Era batota mal rapada, mas estava genial.

Monday, October 02, 2006

Não percebes nada de métricas de poesia e inventas como um cão

A tua sorte de três
Pássaros negros sonhadores com a noite
Termina quando um partir
E os outros dois acordarem

Teu sonho não perdura
Tua festa não tem fim
O despertador para as cinco desta madrugada
Perdeu a corda,
Acorda para mim.

Friday, September 29, 2006

Demissão

Exma. Directora Sónia Manuela Alves Tadeu,

Venho por este meio comunicar-lhe a rescisão do contrato que me vincula à empresa que V. dirige, por motivos de que se prendem com a arquitectura e construção do escritório que albergam esta, mais precisamente com a localização do meu gabinete. Como V. saberá, para a concentração e destreza intelectual necessárias ao desempenho das minhas tarefas é absolutamente necessária uma constante tranquilidade e silêncio absoluto para minimizar as distracções tão funestas a um bom desempenho, naturalmente da maior importância para a produtividade desta empresa. Uma pequena falha na revisão de grandes volumes de números com que diariamente lido pode trazer prejuízos da maior gravidade, e apesar de felizmente nunca se ter dado qualquer caso dessa natureza, a presença constante do risco de tal acontecimento é para mim fonte de enorme consternação e inquietude, dadas as condições em que presentemente exerço as minhas funções. Ora como V. certamente saberá, a recente reorganização do espaço no escritório colocou-me no gabinete do fundo, facto a que não coloquei qualquer oposição, por ser um espaço amplo, com uma janela grande por entra uma bonita luz natural e que contribui para um bom ambiente de trabalho. Não podia porém imaginar, na altura em que aceitei esta nova disposição física, que o espaço contíguo ao meu novo gabinete fosse comprometer tão profundamente o meu desempenho. Creio, se me permite, que V. estará a imaginar no momento em que lê estas linhas que o corredor de passagem do outro lado do meu gabinete e o seu natural ruído característico são a fonte de perturbação do meu trabalho, mas muito pior do que esse facto, peço a V. que faça o exercício mental de reconstruir a arquitectura dos pisos deste prédio onde a empresa de V. se situa, e identificar qual o compartimento contíguo à parede que tenho exactamente por trás da minha secretária e da minha pessoa. Após esse exercício creio que se tornará muito mais simples para V. entender que o ruído dos tacões de V. ou de outra colaboradora desta empresa é efectivamente incomodativo quando passam no corredor - e perdoe-me o atrevimento mas eu sei que neste momento foi V. que passou porque reconheço o passo curto e acelerado que a caracteriza -, mas seguramente a verdadeira fonte de problemas e a origem desta carta está no destino que V. está a tomar e que a leva neste momento atrás de mim, separados por uma parede que contém a canalização necessária para uma primeira descarga, incómoda, e unidos por uma chuva torrencial que cai e nos faz aguardar até o sol doirar assim que os últimos pingos caiam nas poças com a perturbação ondulatória que as contas saem todas trocadas e só mais um pequeno chuveiro rápido e inesperado e eu saio porque V. me perdoe mas mesmo após a segunda descarga eu já não consigo fazer nada de jeito e a minha cabeça já está perdida nesses raios de sol que espelham a desconcentração perdida porque já vai outra a seguir e, olhe eu não sei não dá e pois o sol chove mais e ela não posso não poça não nada


Eu peço imensa desculpa, mas não posso continuar. Queira V. aceitar a minha demissão.

Com os melhores cumprimentos,

A.

O muro branco

Como era possível, ela não conseguia explicar, nunca tinha ouvido semelhante coisa e tinha a certeza absoluta que não tinha guardado no seu computador - nem tão pouco copiara para o leitor de MP3. E não o emprestara a ninguém, isso era certo, e por isso como aquela música misteriosa tinha ali ido parar era um mistério.
A primeira vez que a escutou estava deitada na relva do parque, ao fim do dia de Verão. Era uma balada bonita, cantada por um tipo que parecia ser novo pela voz (agradável, por sinal), e com um refrão que dizia qualquer coisa deste género:


...E quando vires o muro branco
Não o contornes, não corras tanto
O portão não vai chegar tão cedo
E o teu tempo já não é demais

E quando chegares à floresta rosa
Escuta o pássaro, aprende o canto
Se queres beber do seu bico
Tens que saltar o muro branco.

A melodia entrava facilmente no ouvido, e a voz daquele estranho era a perfeita companhia para o descanso no relvado, onde ela acabou por adormecer. Acordou quando o sol estava prestes a pôr-se ao longe, no horizonte. Lançava a sua língua pela última vez naquele dia, tomada de tons de fogo áspero, lambendo a copa das árvores ao fundo do parque, onde os pássaros se recolhiam. O leitor de MP3 tinha entrentanto ficado sem bateria, enquanto dormia. Mas ainda havia luz suficiente para entrar por entre as árvores.

Tuesday, September 26, 2006

O Segredo da Vida

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alhaupun
hetasdebacalh
aupunhetasdebac
alhaupunhetasdebac
alhaupunhetasdebacalh
aupunhetasdebacalhaupun
hetasdebacalhaupunhetasdeb
acalhaupunhetasdebacalhaupunh

Monday, September 25, 2006

Interrogação acentuada

E agora como é que pensas escapar à prisão de pedra e chapa e pó amarelo de restos antigos de outras casas outrora aqui construídas se até a máscara de pedra que um dia foi feita de carne como tu se perde entre as outras pedras fendidas e acostumadas ao passar dos tempos lentos e agonizantes dos quais fuga qualquer parece ser possível como se tudo se resumisse a uma incontornável sentença de rendição aos anos acumulados pela pressa que não tiveste nem ela a tua máscara porque afinal ela é a tua metáfora e a tua representação imortalizada no granito fendido como tu que estás golpeado com uma profundidade de morte tão lenta quanto tu a quiseste e tens?

Sunday, September 24, 2006

A procissão molhada

Não posso adorado Frei
Amar aquela que sei
Cuspir no chão
E coçar-se com a mão

Não posso senhor Prior
Aguentar a dor
De casar com a Justina
Pois cheira o meu fato a naftalina

Não posso meu bom Abade
Sentir grande saudade
Da Sónia Manuela
Que me fazia o arroz-doce sem canela

Não posso senhor Bispo
Namorar sem um Kispo
Pois que chove na minha rua
E a culpa, ora pois, é toda sua.

Thursday, September 21, 2006

A tua obsessão

Na A29, entre Porto e Aveiro, algures perto de Ovar existe uma igreja antiga, que se vê da estrada.É feita em pedra, e tem duas torres, com um ar simples, tosco, e quase abandonado. Fica junto a um viaduto, e à noite é iluminada pela luz amarela de um poste de iluminação pública. Esta igreja tornou-se a tua obsessão, sempre que lá passas à noite. Durante o dia inspira-te a recordação da sua fachada, sob a luz amarela e crua.

Sabes que tens que ir lá, uma noite, por um motivo que te ultrapassa. Vai sozinho, ou melhor dizendo, vai com o bruxedo que te mantém nessa inquietação. Também não sei o que vais lá encontrar, nem sei o que se irá passar. Sei apenas que deves ir em breve, porque essa ansiedade já não aguenta muito mais.

Prometes que me contas depois o que se passou? Eu fico aqui no quarto à tua espera.

Morte Oferecida

Sabes muito bem que se eu pudesse ver o que vai debaixo do teu vestido de Verão morreria nessa mesma noite, lentamente, como se tivesse um tomado veneno suficientemente forte para me consumir em espasmos dolorosos, como um prazer levado longe, demasiado longe. E também sabes que anseio essa morte com a força de querer viver, debaixo desse tecido branco, perdido nos teus seios de calor tenso e gosto salgado pelo suor que respiras, como um labirinto cuja saída quero ignorar, uma vez aí perdido.

E no entanto, sorris com a mesma candura que sempre conheci nos teus lábios, nas tuas maçãs salientes que não te deixam jamais envelhecer. São tudo tontices, não é verdade? Eu sei que é assim que tu pensas.

Mas nesse caso, porque não me mostras o mundo para além do teu vestido de Verão? Existe um fundo de receio pela minha morte, se o fizeres? Acreditas em mim, afinal?

A decisão é inteiramente tua, já nada tenho a perder. Estou pronto.

Ao meu querido Professor

Diga-me professor, o que representam estes desvios? Está outra vez a querer uma incursão no surrealismo? Parece-lhe poder ganhar algo de novo com isso?

E o humor, porque se perde? E o romantismo, porque se apura?

Talvez ainda seja precoce para responder a estas questões. Sei porém que está a acontecer algo para além do seu controlo, da sua vontade. Será talvez a teoria unificadora a ganhar forma, aquela que criará finalmente o seu mundo e o tornará independente, auto-suficiente para viver isolado. Talvez esperasse ter mais intervenção neste processo, mas não se preocupe. Afinal de contas, essa impotência de mero espectador que nos deslumbra, enquanto um universo se cria diante dos nossos próprios olhos.

Mas por agora, ainda há um longo caminho a percorrer, deixe-o tomar o seu curso natural. Ao trabalho, professor!

Tudo em Família

Maria Luciana Alves Em
Doze de Agosto do mês passado
na companhia da prima Joana Almada
Decidiu por livre e espontânea vontade

Despovoar o monte-de-Vénus
Com o auxílio de um espelho
E uma lâmina romba do tempo da Guerra
de Catorze Dezoito onde o avô

Justino Alves matou
Quatro perdizes com a sua mauser
Até ficar encravada
Na greta da avó Luísa Almada.

Para desgraça dos netos
Dos oficiais e do Kaiser
A Guerra repetiu-se pela segunda
E só terminou no Domingo.

Tuesday, September 19, 2006

O Pólo Vermelho e o Cabeçudo desconhecido

Equilibrar toda a estrutura era complicado, mas o pior era o calor que sentia dentro do cabeçudo, enquanto desfilava pela rua, ao som dos bombos na frente. Pelos passeios em ambos os lados da rua apinhava-se uma pequena multidão em festa. Ele sentia a cabeça toda transpirada do calor, fazia comichão na nuca, e os fios de água escorriam pela testa, sem os poder limpar.
Todo esse desconforto do aparato que envergava foi porém esquecido no momento em que alguém do passeio lhe acenou com o braço, e que ele não conhecia. No seu rosto ela tinha uma expressão risonha, um sorriso ternurento e de cândida meninice, não menos do que adorável. Vestia um polo vermelho garrido, com uma risca branca em todo o seu redor, e com a mão ajeitava os cabelos que lhe cruzavam os olhos por causa do vento;e saudava-o com uma familiaridade que ele não compreendia, e que julgou ser um mal-entendido, alguém que o confundira com outro cabeçudo. Ela porém não parava de lhe acenar e de lhe sorrir, como se a qualquer momento estivesse prestes a sair do passeio para o abraçar na rua, em pleno desfile.
Ao fim daquele dia, depois de toda a festa ter acabado, regressou a casa, com a enorme cabeça que fazia questão de guardar, até ao ano seguinte. Tinha um canto na garagem transformada em espaço de arrumos para a sua cabeça festiva. Colocou-a no seu sítio e ia deitar-se, sentia-se exausto depois do dia tão longo e tão cansativo. Algo porém lhe captou a atenção no momento em apagava a luz: um polo vermelho com uma risca branca pousado sobre uma cadeira antiga que tinha ali arrumada, um polo tão familiar quanto estranho pela sua presença ali. Aproximou-se e pegou nele, ao que o seu toque ainda respirava o corpo morno de alguém. Tomou então um marcador preto que tinha sobre uma mesa, e na faixa branca escreveu o seu nome. Para que no ano seguinte, quando ela lhe acenasse, não fosse mais um estranho oculto por uma cabeça que não era a sua.

Sunday, September 17, 2006

Cuidado

Estou a tornar-me muito romântico nas histórias. É necessário rapidamente compensar com algo do velho género, algo digno da Sónia Manuela.

Promessa esquecida

O Cadillac do princípio dos anos 70 era uma máquina preta gigantesca. A grelha da frente impunha um respeito presidencial, os estofos eram sofás de couro autêntico, e o depósito era parecia pequeno para aquela besta sedenta de galões de gasolina. Tinha-o trazido da América, um dos frutos de trinta anos de trabalho no Texas, onde comprara o chapéu branco de cowboy com que gostava de passear ao fim-de-semana, junto à praia. Era o Rei, de nome e de pinta. Os miúdos da vizinhança chamavam-no o King.
«King, vamos às babes?»
E atrás do volante, dava duas aceleradelas, perpetuando o espírito americano com o chapéu posto e uns óculos de sol espelhados, também comprados do outro lado do oceano.
Foi num Domingo: estacionou o Cadillac em frente ao mar, e pôs a tocar uma das suas velhas cassettes de Country que o deixavam com uma nostalgia aconchegante. O horizonte estendia-se até tocar o céu azul forte e limpo, as gaivotas pairavam ruidosas sobre o mar tranquilo, e o vento trazia os primeiros sopros de um Outono tímido que começava a chegar. De súbito, aquela voz familiar interrompeu a música, com a pronúncia inconfundível e a meiguice que ele jamais tinha esquecido:
«Armando, promise you show me the sea one day, honey?»
E a música continuou a sua balada triste. O Rei voltou-se de repente para o banco de trás, procurando a explicação para o que podia ter sido apenas uma alucinação, mas atrás não havia nada a não ser o austero e principesco banco revestido de couro. Era a voz da Cindy, tão jovem e tã0 doce como a primeira vez que a tinha escutado, num bar em Austin, em sessenta e quatro. Viveram juntos durante dois anos, muito antes de ter conhecido aquela que viria a tornar-se na sua esposa para o resto da vida. Eram jovens e estavam apaixonados, faziam planos para o futuro, mas tudo se perdeu pelo caminho, e apenas ficaram algumas boas recordações.
Puxou a fita da cassette atrás, lembrando-se de que aquele pedido poderia ter sido gravado entre a música por alguma ocasião de que já não se recordava, mas a música tocou seguida, sem quaisquer interupções, sem a voz da Cindy.
A hora do almoço estava próxima, e era altura de regressar a casa. E lá foi o Rei estrada fora, ouvindo as músicas da sua vida, recordando os seus cabelos loiros, os olhos azuis e o ramo de margaridas na mão, colhidas depois de um passeio no campo num fim-de-semana, tão longe de casa e tão longe do mar.

Friday, September 15, 2006

Nuvem de Fumo

Ela fumava o cigarro tranquilamente, com um ar de prazer no rosto, não sei se era pelo tabaco, se pelos elogios que lhe tecia.
«És habilidoso com as palavras, disso não há dúvida. Quantas já conquistaste assim?»
«Nenhuma, creio. Até porque não sou muito bonito.»
Ela olhou para o chão, sorrindo. O seu silêncio veio como uma confirmação, e senti-me triste por instantes, porque ela era bonita, alguém por quem me poderia apaixonar.
«Gosto da tua voz, sabes? Conquistavas muitas através dela.»
«Tu, por exemplo?»
«Eu não, já vi que és o produto genuíno. Em breve estarás a partir, e eu não procuro um amor de cinco dias.»
«E porque é que dizes isso? Não está nos meus planos partir, tenho cá casa, emprego,...»
«Eu sou feiticeira, consigo ver tudo o que te disse.»
No seu rosto não havia o menor indício de ironia. Pedi-lhe que me provasse o que dizia.
«Não acreditas? Então observa esta nuvem de fumo: vai tomar a forma de uma sardanisca.»
E com uma baforada longa, expeliu uma nuvem difusa que aos poucos tomou uma forma dançante no ar, compondo-se lentamente no pequeno réptil de cauda longa e cabeça em forma de losango.
Já passaram sete dias, e eu nunca mais a vi. Finalmente decidi deixar aquele maldito emprego.

Wednesday, September 13, 2006

Fora do meu tempo

Nunca pensei que ao fim destes anos a quinta lâmpada do túnel continuasse fundida, a única, tal qual a encontrámos naquela tarde, depois das aulas, no ano em que finalmente aceitaste namorar comigo. A escola ficava perto da linha do comboio, e porque não querias ouvir os comentários parvos dos colegas e porque eras audaz e aventureira fomos para o túnel. De trinta em trinta metros havia uma reentrância na curvatura da pedra onde apareciam umas portinholas de metal pintadas de preto, iluminadas por uma lâmpada de cor amarela mortiça, que tudo tornava igual, debaixo da sua luz. Deste-me a mão e desatámos a correr pelo túnel fora, querias ir para uma parte mais escura porque metia mais medo, e foi então que reparaste que a quinta saliência tinha a lâmpada fundida. Era um local seguro para cabermos os dois, protegendo-nos dos comboios que passavam a cada quinze ou vinte minutos. E foi naquele canto escuro recortado na pedra, húmido e frio, com a gravilha invisível sob os nossos pés - reconhecível apenas pelo seu ruído típico enquanto era calcada - que nos beijámos com a fúria da nova descoberta, abafando o silêncio num rumor ofegante até secar as línguas animadas, até dissolver ambas as salivas num alimento indivisível comum, contendo um pouco de cada um de nós. «Se não me metes as mãos nas mamas, acaba-se já aqui o namoro», disseste com a maior das naturalidades, porque era exactamente aquilo que querias dizer, porque não era preciso conversa redundante que poluísse a ideia original. Claro que fiquei grato à escuridão por ter ocultado a minha expressão de terror, mas logo me habituei à tua franqueza, e certo era que não queria que acabasse ali o namoro. Tinhas umas mamas estupendas para os quinze anos de então, eram grandes - porque apenas o tamanho importava entre a rapaziada naquele tempo - e tinhas uma grande propensão a intumescer os mamilos muito para além do disfarçável. Era por isso que te chamavam a «Faroleta». Para mim era a primeira vez que experimentava semelhantes sensações, deixava os dedos abertos e esticados embaterem e contornarem as pequenas formações tensas, excitado pelo risco acrescido que surgia sempre que uma composição percorria o túnel a grande velocidade, fazendo um barulho insuportável, levantando uma corrente de ar que ainda mais te despertava.
«De que estás à espera? Beija-as!» E guiado apenas pelos dedos, como um Braille natural tão antigo como a Humanidade, flecti um pouco um joelhos, para iniciar um longo e prolongado sorvo, de olhos fechados para tentar imaginar como seriam sob a luz do sol, para conseguir distinguir a textura endurecida, para desmontar cada uma das componentes do seu gosto adocicado, morno e materno. «Em que pensas?», perguntou-me após alguns momentos. «Penso no solo de saxofone da Just the way you are, do Billy Joel», disse sem saber porquê.
«Hum, não conheço», disse com indiferença.
«É natural, não é do teu tempo.»
«Quando falas assim pareces tão velho, como se tivesses vivido noutra época!»
E tinhas razão, estava fora do meu tempo, e ainda hoje estou. Mas por outro lado, as coisas não mudaram assim tanto. Afinal de contas, o nosso canto continua tão escuro como naquela tarde, e sinceramente duvido que se lembrem um dia de trocar a lâmpada.

Tuesday, September 12, 2006

Regra Nº3 revisitada

Parece que o objectivo de publicar mais do que uma vez por dia está longe de ser cumprido, o que me obriga a reescrever a regra Nº3: Procurar publicar todos os dias.

E mesmo assim não será fácil de o conseguir.

PS: Finalmente consegui adicionar a Pantera Cor-de-Rosa ao layout. É um bicho muito simpático, e a maneira pausada como fecha as pálpebras dá-lhe um ar intelectual, conhecedor, não dá?

Monday, September 11, 2006

Desejo no fim de Verão

Durante a madrugada, surgindo por entre o nevoeiro espesso e húmido que arrefece a noite, chegará uma traineira com uma encomenda para ti, Sónia Manuela. Vem da imensidão do oceano, de lugares onde nem os teus sonhos algum dia poderão alcançar. Tem dois metros de altura, um rosto jovem e másculo, de uma beleza mitológica que suplanta os teus amores impossíveis de respiração cortada; é musculado e torneado por um cinzel que celebra a perfeição da anatomia, e se das riquezas terrenas também fazes gosto, então este que te trago é rico até ao último recanto das suas entranhas mais escondidas... E agora descansa, porque a traineira ainda vai longe, para lá da tua vista.

Mas Sofia Manuela não conseguia dormir, excitada com a encomenda prometida. Afinal era verdade a história que a sua avó lhe tinha contado, apesar de a ter julgado como um sinal de perda do seu juízo: «Agora que o Verão chegou ao fim, se não conseguiste um namorado, então abana o guizo a um gato preto e ele dar-te-á um à medida dos teus desejos.»

O Pantufas tinha falado com uma clareza inconfundível, antes de se escapulir porta fora, desaparecendo no escuro do corredor ao som do seu pequeno guizo.
Era agora uma questão de tempo até que ele chegasse só para ela, aquele que ultrapassava na concepção o melhor que a sua fantasia podia imaginar.

Saturday, September 09, 2006

A modernização

«Se quiseres até posso apresentar-te. Chama-se Carolina e tem dois botões atrás, no fundo das costas, como um joystick; ou como uma máquina de flippers.»

Os flippers foram populares em tempos, nos salões de jogos que foram caindo em desuso com o avanço tecnológico nos jogos para PC e com o advento das consolas. Segurava-se a máquina pelos lados, e com os dedos indicador e médio pressionava-se os botões laterais, para atirar a bola contrariada de volta para a mesa com inclinação. Se por acaso ela ficasse encravada, era possível dar uma palmada mais forte na chapa da máquina para desencravar a bola, mas se fosse em excesso de força ou do número de vezes, o jogador corria o risco de provocar um «tilt», e os botões deixavam de fazer efeito.

Hoje os jogos são gozados em casa, em detrimento dos salões. os botões passaram para a frente, para um «gamepad» muito completo. Nos jogos de corridas de carros há um para acelerar e outro para travar, nos jogos de lutas um serve para atacar, ao passo que o outro defende os golpes do adversário.

A tecnologia avança com os tempos, ao ritmo da Lei de Moore. E nós temos que a acompanhar, temos que modernizar-nos, não é?

Sim, se for possível gostava que nos apresentasses.

Thursday, September 07, 2006

As Regras de Funcionamento

Este blog vai servir-me de bloco de notas para as ideias que vou tendo ao longo do dia que possam ser eventualmente utilizadas para trabalhos de ficção. Podia fazer o mesmo sem ter que recorrer a um blog, mas cheguei à conclusão que não gosto de andar com blocos de notas, nem gosto de tomar apontamentos em público; sou também bastante preguiçoso, por isso a eventual consulta do blog por outras pessoas poderá obrigar-me de certa forma a preenchê-lo regularmente com as ditas ideias, contribuindo para a minha produtividade.
Os comentários também podem tornar-se úteis para o meu propósito na medida em que as opiniões externas podem ajudar-me a desenvolver determinadas ideias, ou riscar outras de valor reduzido.

Regras que eu devo seguir:

- Desenvolver as pequenas ideias o suficiente para serem posteriormente aplicadas nos meus trabalhos (evitar publicar considerações telegráficas que nem eu mais tarde saberei no que pensava quando as escrevi, tornando o material inútil);

- Publicar no blog a ideia o mais rápido possível após a sua concepção inicial. Desta forma evito a perda de pormenores importantes que normalmente se formam logo na fase inicial, quando o trabalho toma a primeira forma na mente;

- Procurar conseguir mais do que uma publicação por dia, de modo que ao fim do dia possa sempre ter material novo disponível para utilizar como matéria-prima (ao ritmo exigente das mil palavras por dia é importante não perder tempo na busca de novas ideias no momento do trabalho propriamente dito);

- Manter a atenção e o espírito aberto ao material circundante. A quantidade de ideias tem como único limite diário a capacidade de observação e interpretação à luz do mundo criado no meu quarto. Tudo pode ser utilizado como matéria útil, apesar da existência de dias providos de situações mais favoráveis (a rotina diária da vida real limita a visão fantasista);

- Produzir regularmente, e ser indiferente ao número de visitas do blog. Mesmo que o contador marque apenas as minhas visitas, devo ser persistente e disciplinado para manter um débito de trabalho constante e de melhoria contínua. O blog foi criado por mim, e para mim, e é segundo este princípio egoísta que o devo manter e utilizar.

Erros que eu devo evitar:

- Fazer referência a nomes, cidades, ou lugares que existam na vida real. Mesmo que neles me baseie para um trabalho, devo cingir-me a uma perspectiva fantasista cuja distorção da realidade garante que esta perde os elementos que a poderiam caracterizar quanto ao lugar da sua acção e quanto aos seus intervenientes.

- Concentrar um número elevado de ideias num curto espaço de tempo, para depois parar na publicação por um período de duração prolongada. Neste processo o mais importante não é o número de ideias em si, mas sim o estabelecimento de um processo contínuo de trabalho e aprendizagem. Após os picos de produção vêm momentos de paragem muito longos - devo evitar tal situação.

- Desviar-me das regras que eu próprio defini. Toda a matéria do meu quarto é dotada de um estilo e de uma vida singulares, com características que vou gradualmente aprendendo a conhecer. O meu quarto servirá para criar matéria que espero tornar mais perfeita com o tempo, e mais clara na sua natureza. Se outras coisas eu quiser escrever, mesmo que não sejam matéria de trabalhos, que o faça noutro lugar.


Já cheguei a casa. Em breve estarei a entrar no meu quarto...

A arrumação do quarto

Já consegui mudar umas coisas e agora parece melhor. Aí está o rosa choque de um projecto passado da net, e mais algumas alterações. Agora também tem um contador que, apesar de ainda não ter recebido nenhuma visita para além da minha, já marca 18 entradas, graças às pequenas mudanças que vou fazendo.

Ainda está a modos que feioso, mas também nunca tive grande habilidade, paciência ou gosto estético para o webdesign. Assim, após a cópia de algum código html e de uma ajuda externa preciosa, declaro o layout como pronto para as próximas temporadas.

Sunday, September 03, 2006

Pontapé de Saída

Para algo que andei a evitar durante bastante tempo, mas que acabei por fazer, e que é a criação de um blog. Em breve escrevo o motivo que me levou a fazê-lo, e os moldes em que o quero a funcionar.

Para já ando a aprender como é que se mexe nisto, como é que se muda a aparência (para já fica com esta, uma das pré-definidas que quero tornar mais a meu gosto), como é que se gere os comentários, etc.

So far, so good.