A vingança
Pesava um quilo e duzentas gramas, e movia-se com lentidão no prato apresentado, antes de ser aceite e seguir caminho para a panela para cozer. Foi acompanhada com um vinho branco geladíssimo, e as patas enormes, cheias de carne rija e temperada, satisfaziam o paladar com a qualidade de algo universalmente bom. Era uma sapateira soberba, vencida pela lei natural da vida, pescada para morrer, cozida para a satisfação.
Era tarde quando voltei a reencontrá-la, durante a noite, na minha cama. As suas pinças poderosas comprimiam o meu tronco com uma violência asfixiante e que eu não esperava de todo, impossibilitando os meus movimentos e debelando as tentativas de fuga, que se tornavam falhadas e ridículas, perante o poderoso alicate aprisionador. Os músculos abdominais contraíam-se em esforços que ultrapassavam as suas capacidades nominais, mas nem assim aquelas pinças diminuíam na sua investida obstinada e destemida.
Apesar da luta desigual, lutei com todas as forças para continuar naquele movimento de vai-vém, tentando esgueirar-me das garras cruzadas para a liberdade, tarefa assaz difícil. E julgava eu que o bicho empregava toda a sua força na compressão gritante, quando num grito de dores de amor percebi afinal que o esmagamento derradeiro ainda estava para vir, assim como eu, louco de dores e de prazer pelo sofrimento da noite de castigo que o animal que comera horas antes me tinha destinado como forma de vingança.